Antes de iniciarmos, duas advertências necessárias. Primeiramente, em que pese a importância do tema [1], o objetivo deste artigo não é a análise da inconstitucionalidade do voto de qualidade na sistemática adotada pelo legislador para o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) [2]; em segundo lugar, é necessário reconhecer a relevância e a essencialidade do processo administrativo tributário [3], dialeticidade de fundamental importância para o desenvolvimento do Direito Tributário, pois as decisões dele oriundas acabam por orientar a aplicação da legislação tributária, inclusive e principalmente, pelo Poder Judiciário.
Precisamos ter em mente que a existência do CARF não é um favor, mas sim um poder-dever do Estado Administração inserido em um Estado Democrático de Direito e uma garantia constitucional de participação do contribuinte no controle de legalidade do lançamento tributário [4].
O Carf antes da Lei 11.941/09
Antes das alterações trazidas pela Lei 11.941/09, o Regimento Interno do Carf (RICARF) buscava fundamento infraconstitucional em dois diplomas legais, o Dec. n° 70.235/72 (regulamentava os antigos Conselho de Contribuintes) e o Dec. 83.304/79 (regulamentava o Conselho Superior de Recursos Fiscais), ambos recepcionados pela Constituição de 1988 com natureza jurídica de lei ordinária (STF: MAS 106.307/DF
Em linhas gerais, a legislação supramencionada regulamentava expressamente a competência recursal, as espécies de recursos e o número de componentes de cada uma das Câmaras dos antigos Conselhos (08), mas silenciava quanto ao critério da paridade e quanto ao voto de qualidade. Estes últimos possuíam previsão expressa somente nos decretos vigentes à época (Dec. 54.764/64).
Destaca-se, por oportuno, que foi o Dec. 83.304/79 que, além de fixar o número de Conselheiros de cada Câmara dos antigos Conselhos (num total de 08, art. 4º), mitigou severamente a paridade no Carf, tornando a função de Conselheiro Presidente exclusiva para os Conselheiros integrantes da representação da Fazenda (artigo 6º). Até então, referida função poderia ser exercida por qualquer Conselheiro, independentemente da representação.
Quanto ao critério da paridade, para sermos mais precisos, até o ano de 1991 estava prevista apenas no Dec. 54.764/64 (artigo 2º), que foi revogado expressamente pelo Decreto Presidencial de 24 de Abril daquele ano. Era neste decreto que constava a previsão do “voto duplo” para os Conselheiros Presidentes (artigo 15: “… além do voto ordinário, o de qualidade”), bem com que aos presidentes dos Conselhos incumbiria, também, estudar e relatar, como os demais membros, os recursos que lhe coubessem, na escala da distribuição (art. 16).
Após o ano de 19991, portanto, tanto o critério da paridade quanto o voto de qualidade subsistiram em nosso ordenamento somente com previsão regimental.
Veio, então, o ano de 2009 e com ele a conversão da MP nº 449/08 na Lei nº 11.941, que alterou o Dec. 70.235/72 e revogou expressamente o Dec. 83.304/79.
Para muitos, a Lei nº 11.941/09 teve como grande mérito unificar os antigos Conselhos de Contribuintes e a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) no que hoje conhecemos como Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Para nós, a Lei nº 11.941/09 corrigiu a rota do devido processo legal no âmbito do processo administrativo de lançamento tributário federal, adequando-o à Constituição de 1988.
O Carf após da Lei 11.941/09
A Lei nº 11.941/09, ao alterar o caput do artigo 25 do Dec. 70.235/72, fez da paridade um princípio-regra, resgatou do submundo da ilegalidade o voto de qualidade, fixou sua natureza jurídica como critério de desempate e revogou expressamente o Dec. 83.304/79 (artigo 79), cujo artigo 4º estabelecia em número de 08 componentes para cada uma das Câmaras dos antigos Conselhos de Contribuintes.
Atualmente, portanto, o fundamento de validade do devido processo legal no âmbito do Carf encontra-se apenas no Dec. 70.235/72, que por sua vez não fixou o número de componentes de cada uma das Turmas, os respectivos quóruns de julgamento, tampouco a prerrogativa do voto ordinário por parte dos Conselheiros Presidentes.
De fato, tanto o número de componentes de cada uma das Turmas quanto os respectivos quóruns de julgamento e a prerrogativa do voto ordinário por parte dos Conselheiros Presidentes passaram a ter apenas previsão regimental (artigos 23 e 54, respectivamente).
Destarte, se antes havia uma determinação de que oito eram os componentes das Câmaras, de acordo com o princípio da paridade se os Conselheiros Presidentes estavam contidos na composição dos órgãos, como consectário lógico possuíam, também, a prerrogativa do voto ordinário.
Agora, porém, não existe mais um limite mínimo e/ou máximo de componentes, como então podemos afirmar, que os Conselheiros Presidentes integram o quórum de votação, possuindo, portanto, a prerrogativa do “voto duplo”?
Ora, o fato de exercer a presidência de um órgão colegiado não confere ao seu presidente, automaticamente, o exercício da função judicante neste mesmo órgão. Essas funções não se confundem.
Nossa legislação possui diversos exemplos, nos quais quando o legislador pretendeu atribuir ao Presidente do órgão a prerrogativa do voto ordinário o fez de forma expressa. Por todos, citamos o artigo 150 do Regimento Interno do STF [5], os artigos 10, da Lei 12.529/2011 e da Lei nº 11.182/2011 e o artigo 67, da Lei nº 10.233/2001.
Nem se argumente que não podemos comparar o Carf com os órgãos colegiados que compõe o Poder Judiciário e/ou das agências reguladoras, ao argumento de que o Carf é paritário, pois é justamente a paridade no âmbito do Carf que infirma a necessidade de se preservar o equilíbrio [6] entre os integrantes das categorias nele representadas.
Conclusão
Assim, partindo-se da premissa de que a lei não previu expressamente o direito ao voto ordinário pelos Conselheiros Presidentes, não previu o quórum de instalação e de julgamento, tampouco o número de componentes das Turmas que compõe o Carf, não poderia o seu Regimento Interno, aprovado mediante Portaria do Ministro da Fazenda, restringir o critério material de paridade, atribuindo aos Conselheiros Presidentes do CARF, além do voto de qualidade, o voto ordinário.
Em razão das premissas anteriormente fixadas e com base no critério da paridade, portanto, concluímos que após a Lei nº 11.941/2009 os Conselheiros Presidentes, quando estiverem no exercício dessa função não integram mais quórum de julgamento das turmas. Em havendo empate, caberá àquele o voto de qualidade.
Outrossim, para que o devido processo legal estabelecido pelo Dec. nº 70.235/72 seja respeitado, ou seja, para que os julgamentos do Carf sejam realizados por órgãos colegiados e paritários, é imprescindível a presença dos membros em número par e paritário em suas Turmas, pois sem esse quórum será impossível ao Conselheiro Presidente exercer a prerrogativa do voto de desempate.
Destarte, o artigo 54 do Anexo II do CARF, no que extrapola o disposto no artigo 25, § 9º do Decreto nº 70.235/72, padece de vício formal consubstanciado na invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual. Nesse sentido, in verbis:
“Com o advento da CF de 1988, delimitou-se, de forma mais criteriosa, o campo de regulamentação das leis e o dos regimentos internos dos tribunais, cabendo a estes últimos o respeito à reserva de lei federal para a edição de regras de natureza processual (CF, art. 22, I), bem como às garantias processuais das partes, “dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos” (CF, art. 96, I, a). São normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição. (…) Presente, portanto, vício formal consubstanciado na invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual. Precedente: HC 74.761, rel. min. Maurício Corrêa, DJ de 12-9-1997.” [ADI 2.970, rel. min. Ellen Gracie, j. 20-4-2006, P, DJ de 12-5-2006.] (grifamos)
Ainda que o resultado das alterações trazidas pela Lei nº 11.941/2009 não reflitam as intenções do legislador, o fato é que a mens legis resultante das alterações reaproximou o CARF às suas características embrionárias, alinhando a sua paridade ao nosso atual Estado Democrático de Direito.
Outrossim, se no Carf não existe o voto de representação, como muitos afirmam quando defendem a sua imparcialidade, a adequação do RICARF ao princípio da legalidade, com a manutenção do voto de qualidade nos termos do disposto no artigo 25, § 9º do Dec. nº 70.235/72, manterá a “palavra final” com a Administração Tributária e trará maior transparência as decisões desse órgão, notadamente porque os Conselheiros Presidentes terão que motivar em suas decisões as razões do desempate (artigo 93, inciso IX, da CF/88), ao contrário do que ocorre nos dias de hoje, aonde o voto de desempate segue as mesmas razões do voto ordinário.
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[1] Cerca de 70 ações discutem no Judiciário voto de qualidade no Carf. Consultor Jurídico, 13 abr. 2018. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2018-abr-13/cerca-70-acoes-discutem-judiciario-voto-qualidade-carf >. Acesso em: 14 mar. 2019.
[2] ANDRADE, Fábio M. (2017). Anotações sobre o empate e o voto de qualidade no CARF. Jota, pp. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/anotacoes-sobre-o-empate-e-o-voto-de-qualidade-no-carf-05122017.
[3] Sobre os rumores de extinção, recomendamos o artigo “Fim do Carf e o contencioso tributário”, disponível em https://www.valor.com.br/legislacao/6126611/fim-do-carf-e-o-contencioso-tributario, acessado em 27/02/2019.
[4] Torres, Heleno Tavares. (2015). Processo administrativo fiscal é garantia constitucional insuprimível. Consultor Jurídico, https://www.conjur.com.br/2015-mai-13/consultor-tributario-processo-administrativo-fiscal-garantia-constitucional-insuprimivel.
[5] “Art. 150. O Presidente da Turma terá sempre direito a voto.”
[6] “O direito à igualdade possui uma aplicação específica no campo dos direitos políticos, mais precisamente no direito ao voto. Não basta o mero direito ao voto, mas sim ao voto “igualitário”, perfazendo a premissa clássica de que para cada homem, deve haver um voto (one man, one vote).” (grifamos). Araújo, Marcelo Labanca Corrêa de; Gadelha, Gabriela Barreto. DIREITO À IGUALDADE DE VOTO E FEDERALISMO: Possibilidade de compatibilização do valor igual do voto à luz da integração regional na Federação brasileira. Disponível em: http://asces.edu.br/publicacoes/revistadireito/edicoes/2011-1/Labanca-isonomia.pdf.